Em cada pronunciamento sobre a Revolução dos Cravos, uma aula de lusitanidade, de poesia, de vivência, de história… aula de vida. A veia poética de Flavio Viegas Amoreira falou mais alto ao brindar a plateia com uma síntese do sofrimento infligido ao povo lusitano nas mais de quatro décadas de ditadura. Como a revolução esteve diretamente ligada à questão cultural, Amoreira, de forma apropriadíssima na sua análise dos fatos, citou verso de um belo poema alusivo à Revolução de Abril, de autoria do escritor português Manuel Alegre.
25 de Abril
*Flávio Viegas Amoreira
A Revolução dos Cravos não foi só um fato português, foi um fenômeno global de libertação pela paz. Jovens de todo mundo se inspiraram na derrubada de 48 anos de ditadura numa só noite.
Portugal se acostumou com a ordem, mas não se faz um país só com a ordem. Portugal se acostumara com o silêncio, mas não se constrói uma sociedade só com o silêncio. Portugal se acomodara com a rigidez financeira do regime, mas não se ergue uma economia sem a coragem dos bons gastos, a ousadia nos investimentos.
Até ditador tinha suas virtudes: o velho Salazar honesto, discreto, competente ao tirar Portugal da anarquia dos anos 20 não soube sair de cena, imprimiu uma receita medieval de austeridade que tornou a nação numa aldeia sem pecados, mas também sem mudanças.
Quando o mundo tinha vencido os fascismos na Segunda Guerra, Portugal insistiu no autoritarismo. Quando os impérios todos tinham entregue as colônias, Salazar insistira em mantê-las com o sacrifício de gerações de moços em África. Governar é intuir por onde os ventos levam, e a caravela lusitana teimosamente estacara num retrocesso que só levariam ao atraso.
Sem tecnologia, sem indústria, sem abertura de mercados, a economia estagnou e o país se fechara numa concha de falsa tranquilidade.
A revolução cometeu muitos erros, para descolonizar deixou órfãos milhares de ‘retornados´, levou aos excessos ideológicos, mas em dois anos de desatinos Portugal encontrou o rumo e hoje é referência em qualidade de vida, encontrou sua vocação europeia sem descuidar das parcerias com os países luso-parlantes.
Portugal que sob Salazar amava a ordem se perdeu pelo medo da liberdade. Hoje exemplo de liberdade é uma terra de ordem em relação a qualquer país do mundo. Ordem não imposta, mas alcançada pela Educação, pelo respeito às diferenças, pelo cultivo da sua cultura porque Portugal não é um país somente, é sede de uma civilização.
Não precisamos morar em Portugal, somos Portugal pelo sangue e espírito encarnado. Os ódios das polarizações são coisa do passado, agora mesmo a sociedade soube isolar os extremos encontrando um centro de coalizão. Se num passado recente os descendentes pouco se orgulhavam das origens por rebeldia ou desconhecimento do que fosse Portugal, hoje acorrem aos montes a tentar a cidadania redescobrindo a identidade por orgulho ou necessidade de novos horizontes que Portugal proporciona. O que se aprende de modo
definitivo nesses 50 anos: só a Democracia traz desenvolvimento para todos e por mais tempo.
Recordo menino crescido observar o avô lendo atento as páginas amareladas em papel fino do diário de notícias do Funchal: preocupado com os arroubos pós-revolucionários murmurando:
´´o que vai dar tudo isso? O que será de Portugal´´…. pudera ver Portugal de hoje, irreconhecível pela sua pujança, mas guardando o romantismo de quem soube vencer tanques com cravos…
´´Foram dias foram anos
a esperar por um só dia.
Alegrias. Desenganos.
Foi o tempo que doía
com seus riscos e seus danos
foi a noite e foi o dia
na esperança de um só dia.´´
Verso de Manuel Alegre de Melo Duarte Nascimento
*Flávio Viegas Amoreira – Escritor, Poeta, Professor de Literatura, Curador da Casa das Culturas de Santos – Foto/
(25 de abril de 2024)